Questões de Biologia e Afetos na Adoção

Rita Pratas

A adoção tem sido uma temática de interesse maior desde a notícia do bebé encontrado no lixo, em finais do ano de 2019 e, pela sua pertinência, merece aqui o nosso destaque.

Nos termos da al. h) do art. 2º do Regime Jurídico do Processo de Adoção, o processo de adoção é o “conjunto de procedimentos de natureza administrativa e judicial, integrando designadamente atos de preparação e atos avaliativos, tendo em vista a prolação da decisão judicial constitutiva do vínculo da adoção, a qual ocorre na sequência de uma decisão de adotabilidade ou de avaliação favorável da pretensão de adoção de filho do cônjuge”.

Deste preceito resulta que a adoção está sujeita a determinados requisitos, tanto para o adotante como para o adotado. É nesse sentido que o nº 1 do art. 3º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo estatui que a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar “quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a remove-lo” e o nº 2 acrescenta: “considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente se encontra numa das seguintes situações: a) está abandonada ou vive entregue a si própria; b) sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vitima de abusos sexuais (…)”

A adoção é, pois, um processo que, além de moroso, é complexo, porquanto envolve pessoas e afetos.

A adoção implica, numa primeira fase, a avaliação das caraterísticas e necessidades das crianças e a seleção de candidatos a adotantes. Posteriormente é feito um “matching” entre as crianças e os candidatos a adotantes, isto é, os organismos da Segurança Social competentes selecionam uma família que corresponda às necessidades de determinada criança.

Todavia, o processo de adoção continua a tardar demasiado tempo para os mais diretamente envolvidos. E enquanto se espera pela decisão do tribunal, a criança vive durante meses- e em alguns casos, anos- institucionalizada, à espera de amor e carinho.

Ora, tendo em conta que já vários estudos concluíram que as crianças adotadas mostram maiores níveis de vinculação quando comparadas com as crianças institucionalizadas, consideramos que a solução que melhor se coaduna com o critério do superior interesse da criança é a integração num ambiente familiar estável, que lhe permita crescer rodeada de amor, em segurança, com cuidados de saúde e onde seja promovido o desenvolvimento das suas capacidades físicas, intelectuais e morais.

Por outras palavras, defendemos que a criança deve crescer no seio de uma família que se revele empenhada em proporcionar-lhe as melhores condições para a acolher. Assim, é do interesse da criança que o processo de adoção seja o mais célere possível, pois só assim se poderá evitar (ou pelo menos, minimizar) os nefastos efeitos psicológicos de uma institucionalização prolongada na criança.

Obviamente que deve existir um especial cuidado na seleção dos pais adotivos. Não há pais perfeitos, assim como não há crianças perfeitas. A adoção é um caminho processualmente complexo e que também envolve questões de valores e afetos. E, como bem sabemos, nem todas as famílias que querem adotar estão preparadas para ser pais.

De acordo com o princípio da prevalência da família consagrado na al. g) do art. 4º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, o aplicador da lei deve “dar prevalência às medidas que os integrem em familiar, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável”.

Ora, da conjugação dos artigos 3º e 4º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo e do art. 1978º do Código Civil, resulta que a intervenção ocorrerá sempre que os menores se encontrem numa das situações de risco elencadas no art. 3º, mas também que, quando tal aconteça, deve ser tentada a reintegração da criança na família biológica.

A família biológica tem um papel fulcral na transmissão da cultura e valores e o contato das crianças com os seus familiares mais próximos, irmãos, tios, avós, é fundamental para o desenvolvimento da sua personalidade. É de particular importância o contacto com os avós que, por terem mais idade e mais experiência, transmitirão à criança valores que não se encontram nos livros, dando-lhes a conhecer tradições e diferentes formas de pensar. Nesta medida, os avós acabam por ser uma figura complementar à dos pais, assumindo uma função educativa, lúdica e recreativa, o que traz benefícios vários à criança.

Razão pela qual, é de extrema importância que o juiz analise objetivamente os requisitos do art. 1978º do Código Civil, determinando a adoção apenas quando exista uma certeza da incapacidade e/ou negligência dos pais biológicos, devidamente fundamentada pelo técnico.

A medida decretada não pode destinar-se a punir os pais, mas sim garantir a prossecução do superior interesse da criança (cfr. Acórdão do STJ de 30-06-2011, Proc. n.º 52.08.05TBC;M.G1.S1 in www.dgsi.pt ).

Importa ainda ter em conta que, sendo a adoção irrevogável, os seus efeitos na vida do adotante – entre eles, a extinção das relações familiares entre o adotado e os seus ascendentes e colaterais naturais- vão ser definitivos. Pelo que, apenas deve ser determinada a adoção a título subsidiário, quando se esgotem as possibilidades de reintegração na família biológica.

De facto, o aplicador do direito tem entre mãos uma difícil tarefa, todavia, quando está em causa o superior interesse da criança, o juiz tem de decidir sem medos. É importante não esquecer que, ao adiar a decisão, o juiz apenas estará a prolongar o sofrimento da criança, coartando-lhe a possibilidade de ter uma família. A criança não pode ficar esquecida numa instituição, por tempo indeterminado, à espera da “família ideal”.

Assim e tal como refere o Acórdão do TRL de 08-02-2018, Proc. n.º 2043/16.3T8SNT.L1-6, in www.dgsi.pt, entendemos que se impõe aos juízes uma especial sensibilidade no que concerne a esta temática. Mais, os juízes devem decidir de forma objetiva- norteados pelo princípio do superior interesse da criança – tendo sempre presente que a relação com irmãos e avós é, em muitos casos, benéfica para a criança e por isso, deve ser preservada, cfr. estatui o nº 3 do art. 1986º do Código Civil.

O biologismo tem de estar de mãos dadas com o superior interesse da criança. Mas só isto não chega.

Salvaguardar o superior interesse da criança significa, de forma simplista, assegurar que a criança é amada. Ora, todas as crianças precisam de afetos para crescerem felizes e, por isso, é urgente assegurar que todas as crianças, sem exceção, são “adotadas”, inclusive as biológicas.

Para isto é necessário que quem adota dedique mais tempo a brincar com as crianças, partilhando conhecimentos e experiências, estando presente nos insucessos e celebrando os sucessos, pois só existe uma verdadeira parentalidade quando se cria uma relação afetiva com a criança.

Sendo certo que ainda há muito a fazer no contexto da adoção em Portugal para que o processo se torne mais célere, estamos em crer que o primeiro passo para que se cumpra o brocado “salvaguardar o superior interesse da criança” está ao alcance de todos nós, que devemos assegurar que a criança cresce rodeada de afetos.

Como bem diria Eugénio de Andrade, “é urgente o amor” e, acrescentamos nós, mais do que falar em adoção (no sentido lato do termo), é urgente que se multiplique o afeto. É esse o ingrediente chave que falta, muitas vezes, na adoção.

Por Rita Maria Pratas, Advogada Estagiária

31/07/2020

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